Repassando
ELIANA CALMON - A LOBA QUE COME LOBOS
É Santo Agostinho:
“A esperança tem duas
filhas lindas:
a indignação e a
coragem.
A indignação nos
ensina a não aceitar as coisas como estão;
a coragem, a
mudá-las".
que já usaram a Justiça a confiança é ainda menor.
A loba que come lobos...
Por Maria Cristina Fernandes.
Sabatinada para o Superior Tribunal de Justiça, na condição de
primeira mulher a ascender à cúpula da magistratura, a então
desembargadora da justiça baiana, Eliana Calmon, foi indagada se teria
padrinhos políticos. "Se não tivesse não estaria aqui". Quiseram
saber quem eram seus padrinhos. A futura ministra do STJ respondeu na lata:
"Edison Lobão, Jader Barbalho e Antonio Carlos Magalhães".
Corria o ano de 1999. Os senadores eram os pilares da aliança que
havia reeleito o governo Fernando Henrique Cardoso. A futura ministra contou ao
repórter Rodrigo Haidar as reações: "Meu irmão disse que pulou da cadeira
e nem teve coragem de assistir ao restante da sabatina. Houve quem dissesse que
passei um atestado de imbecilidade".
Estava ali a sina da ministra que, doze anos depois, enfrentaria o
corporativismo da magistratura. "Naquele momento, declareitotalmente minha independência. Eles não poderiam me pedir nada porque
eu não poderia atuar em nenhum processo nos quais eles estivessem. Então,
paguei a dívida e assumi o cargo sem pecado original."
Eliana Calmon nunca escondeu seus padrinhos
De lá pra cá, Eliana Calmon tem sido de uma franqueza desconcertante sobre os
males do Brasil.
Num tempo em que muito se fala da judicialização da política, Eliana não perde
tempo em discutir a politização do judiciário.
É claro que a justiça é política.
A questão, levantada pela ministra em seu discurso
de posse no CNJ, é saber se está a serviço da cidadania.
A "rebelde que fala", como se denominou numa entrevista, chegou à
conclusão de que a melhor maneira de evitar o loteamento de sua toga seria
colocando a boca no trombone.
Aos 65 anos, 32 de magistratura, Eliana Calmon já falou sobre quase tudo.
- Filhos de ministros que advogam nos tribunais superiores: "Dizem que têm trânsito na Corte e exibem
isso a seus clientes. Não há lei que resolva isso. É falta de caráter"
(Veja, 28/09/2010).
- Corrupção na magistratura: "Começa embaixo. Não é incomum um
desembargador corrupto usar um juiz de primeira instância como escudo para suas
ações. Ele telefona para o juiz e lhe pede uma liminar, um habeas-corpus ou uma
sentença. Os que se sujeitam são candidatos naturais a futuras promoções".
(Idem)
- Morosidade: "Um órgão esfacelado do ponto de vista administrativo, de funcionalidade e eficiência é campo fértil à
corrupção. Começa-se a vender facilidades em função das dificuldades. E quem
não tem um amigo para fazer um bilhetinho para um juiz?" (O Estado de S.
Paulo, 30/09/2010).
Era, portanto, previsível que não enfrentasse calada a reação do
Supremo Tribunal Federal à sua dedicação em tempo integral a
desencavar o rabo preso da magistratura.
Primeiro mostrou que não devia satisfações aos padrinhos. Recrutou no primeiro
escalão da política maranhense alguns dos 40 indiciados da Operação Navalha;
determinou o afastamento de um desembargador paraense; e fechou um instituto
que, por mais de 20 anos, administrou as finanças da justiça baiana.
No embate mais recente, a ministra foi acusada pelo presidente da
Corte, Cezar Peluso, de desacreditar a justiça por ter dito à
Associação Paulista de Jornais que havia bandidos escondidos atrás da toga.
Na réplica, Eliana Calmon disse que, na verdade, tentava
proteger a instituição de uma minoria de bandidos.
Ao postergar o julgamento da ação dos magistrados contra o CNJ, o
Supremo pareceu ter-se dado conta de que a ministra, por mais
encurralada que esteja por seus pares, não é minoritária na opinião
pública.
A última edição da pesquisa nacional que a Fundação Getúlio Vargas divulga
periodicamente sobre a confiança na Justiça tira a ministra do isolamento a que
Peluso tentou confiná-la com a nota, assinada por 12 dos 15 integrantes do CNJ,
que condenou suas declarações.
Na lista das instituições em que a população diz, espontaneamente, mais
confiar, o Judiciário está em penúltimo lugar [...]. Entre aqueles
A mesma pesquisa indica que
- os entrevistados duvidam da honestidade do Judiciário (64%),
- o consideram parcial (59%) e
- incompetente (53%).
O que mais surpreende no índice de confiança da FGV é que o Judiciário tenha
ficado abaixo do Congresso, cujo descrédito tem tido a decisiva participação da
Corte Suprema - tanto por assumir a função de legislar temas em que julga haver
omissão parlamentar, quanto no julgamento de ações de condenação moral do
Congresso, como a Lei da Ficha Limpa.
A base governista está tão desconectada do que importa que foi preciso um
senador de partido de fogo morto, Demóstenes Torres (DEM-TO), para propor uma
Emenda Constitucional que regulamenta os poderes do CNJ e o coloca a salvo do
corporativismo dos togados de plantão.
"Só deputado e senador têm que ter ficha limpa?", indagou o senador.
Ao contrário do Judiciário, os ficha suja do Congresso precisam
renovar seus salvo-conduto junto ao eleitorado a cada quatro anos.
O embate Peluso-Calmon reedita no Judiciário o embate que tem marcado a
modernização das instituições.
Peluso tenta proteger as corregedorias regionais do poder do CNJ.
Nem sempre o que é federal é mais moderno. O voto, universal e em todas as
instâncias, está aí para contrabalancear.
Mas no Judiciário, o contrapeso é o corporativismo. E em nada ajuda ao
equilíbrio.
Em seis anos de existência, o CNJ já puniu 49 magistrados.
A gestão Eliana Calmon acelerou os processos. Vinte casos aguardam julgamento
este mês.
Aliomar Baleeiro, jurista baiano que a ministra gosta de citar, dizia que a
Justiça não tem jeito porque "lobo não come lobo".
A loba que apareceu no pedaço viu que dificilmente daria conta da matilha
sozinha, aí decidiu uivar alto.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às
sextas-feiras